[resenha] Questões preliminares de importância interpretativa, de Florestan Fernandes

Qualquer crítica, erro encontrado ou discordância interpretativa, favor ter em mente que não havia nem terminado de ler o texto de Florestan ao iniciar esta resenha. Mesmo assim, comente se fizer questão de apontar o que quer que seja sua opinião a respeito desta coisa.


Logo no início do texto, já há uma crítica à posição dogmática dos historiadores, que imobiliza e alça a história oficial como a única possível. Inviabilizam a existência do processo histórico enquanto atividade que se renova no presente, tentando transformar o conhecimento histórico em algo que ele não é: um sistema simplificado de conhecimentos, uma conjunção de fatos esgotados, que jamais devem ser novamente visualizados e reinterpretados. É justamente respondendo a essa visão de História que Florestan inicia seu texto, contrapondo-a à necessidade de estabelecer uma base comum para contextualizar e conceitualizar a burguesia brasileira.

Começa esse processo através duma espécie de via negativa, como os teólogos faziam: abordando o deus cristão a partir do que não poderia ser dito sobre ele. Expandindo o método, generalizando-o, parte-se dum conceito e por meio de argumentações razoáveis são elencadas características não imputáveis ao conceito. Florestan, desse modo, analisa o que é geral e erroneamente considerado burguesia no Brasil e destrincha os erros dessa visão. A comparação mais encontrada é entre as figuras do senhor de engenho e a do burguês, algo que só faz sentido muito superficialmente. Se investigado com cuidado, o senhor de engenho, ou melhor, a classe senhorial brasileira assemelha-se mais a uma nobreza, uma aristocracia, do que à burguesia — isso, claro, levando em conta os padrões europeus. Nem mesmo a associação do senhor de engenho ao nobre é perfeita; associá-lo ao burguês, então, é diminuir ainda mais a veracidade da afirmação.

Outro problema surgido na justaposição das duas figuras — o senhor e o burguês — é a inexistência do lucro nos excedentes do senhor de engenho, justamente a pré-condição do espírito burguês. A construção do burguês se deu a partir dessa mecânica de busca constante do lucro, do excedente que gera mais excedente; não à toa é o personagem histórico associado sempre ao capital. E, embora o poder econômico, nas palavras de Marx, exerça influência sobre as outras esferas sociais — a base mantendo a superestrutura, que renova a base até houver ruptura —, o poder do senhor de engenho se caracterizava mais pela dominação da vida em sociedade do que pelo dinheiro; mais pelas terras que possuía — assim como os nobres da Europa — do que pelo capital acumulado. Sua fortuna era basicamente as terras em sua posse, obtidas a partir da exploração do trabalho alheio, mas isso não se convertia em lucro. Em síntese: o senhor de engenho não era nobre e muito menos comparável ao burguês, embora possuísse semelhanças inegáveis com a nobreza europeia. É importante levar em consideração que as construções ideais para a representação do real são inevitáveis, ou seja, se for preciso compará-lo a alguém, que seja ao nobre dono de terras e não ao burguês mercantil ou capitalista, possuidor de riquezas primariamente econômicas.

No outro extremo, temos os historiadores cujo ponto de vista pode ser resumido numa indagação inocente, simplificadora de sua própria posição, mas útil para compreender sua mentalidade: “Não há burgos no Brasil… como poderia existir burguesia?”. É essencialmente uma dissociação destrutiva, que inviabiliza a construção de modelos teóricos para explicação da realidade, já que não permite a símile como método analítico e invalida, no limite, qualquer semelhança entre grupos humanos distintos. A História, com certeza, é complexa e localizada — não faz sentido transportar integralmente o estudo das revoluções burguesas europeias à criação duma análise idêntica no Brasil: isso desrespeitaria as idiossincrasias do processo histórico. Todavia, não basta essa justificativa para negar a necessidade dum sistema estruturante, que dê suporte ao conhecimento histórico através da filosofia: pela criação de conceitos ou categorias. É somente por meio disso que se dá o conhecimento. Não há outro caminho. Para discorrer sobre revolução burguesa, por exemplo, é preciso conceptualizar não só a burguesia enquanto classe, como também o que é revolução, tendo como base a disposição e organização da sociedade estudada. Ademais, não é característica exclusiva do conhecimento histórico agir assim: como seria possível analisar fenômenos naturais envolvendo o tempo se sua unidade de medida não fosse definida dentro do Sistema Internacional de Unidades? Percebe-se, por trás desse discurso, uma tentativa de romper a relação entre a história europeia e a americana, que se potencializa na seguinte concepção: os valores europeus geradores das revoluções burguesas na Europa não encontram paralelos brasileiros, visto que são sociedades completamente diferentes e de mentalidades irreconciliáveis. Isso é nitidamente falso e o é há muito tempo — há quase um século, Sérgio Buarque de Holanda já ilustrava a influência ibérica e lusitana, principalmente, na constituição da colônia e posteriormente do Brasil. Também não há espaço para o oposto: um determinismo histórico apocalíptico, que vê impossibilidade de superação dos problemas brasileiros graças às heranças coloniais, como se houvesse uma base social imutável que condenasse o país ao fracasso. Pontos de vista que inevitavelmente levam ao niilismo intelectual e nada além disso.

Florestan parte duma concepção histórica interessante, afirmando que o histórico se define pelo caráter da ação tomada diante do que já se encontra estabelecido — se auxilia a manutenção, a renovação ou a substituição dum sistema por outro: todas ações representam o movimento histórico, segundo o autor. No caso do Brasil independente, o caminho optado foi o mais europeu possível. Abraçou-se oficialmente o padrão civilizacional europeu, a Europa francesa e inglesa, industrial, branca. A visão apresentada anteriormente, então, é duplamente errada: demonstrava-se uma inverdade se analisado apenas o período colonial, mas no período imperial a tendência europeizante só aumentou. O que houve, na realidade, foi uma gênese burguesa no Brasil aos moldes europeus, embora ocorrida tardiamente. Uma burguesia representada principalmente pelos negociantes, especuladores, importadores de mercadoria e usurários.

Com o rompimento do pacto colonial e o sucesso da Independência, a burguesia que se formava consegue se expandir. Agora, inexistindo a necessidade de cumprir acordos comerciais exclusivos com a metrópole, ou seja, com a extinção do limite que se antepunha anteriormente aos burgueses, o crescimento do comércio interno era inevitável. Isso na verdade aponta para o caminho de sua formação: a burguesia nasce como uma expressão espontânea de destruição dos pressupostos que fundamentavam a colônia e possuía caráter mais negativo do que afirmativo, pelo menos inicialmente. Não se configurava propriamente como uma classe, quanto menos como uma homogeneidade, o que fornecia o dinamismo característico desses agentes sociais, assemelhando-se à burguesia europeia nesse sentido. Sua principal estratégia de fortalecimento foi o antiescravismo: pode-se afirmar que o antiescravismo funcionou como uma ponte para a consolidação de seus valores e de seus objetivos. A escravidão impedia o desenvolvimento dum mercado interno, impossibilitando o acúmulo de capital e minando os objetivos burgueses de ampliação do lucro. Além disso, o trabalho forçado é essencialmente incompatível com o sistema capitalista, enquanto o trabalho assalariado é seu principal motor. Foi necessário então atacar as bases morais e jurídicas do sistema escravocrata em nome do “humanismo”, em resposta ao mau tratamento que recebiam os escravos. Era usado como argumento também o progresso: uma colônia escravocrata tornar-se independente e continuar utilizando mão de obra escravizada era uma negação do progresso, ainda mais quando, dizia o discurso burguês, havia a possibilidade de industrializar e comercializar o Brasil.

Um fato que chama a atenção é a descentralização da burguesia, formada por interesses difusos que porventura coincidiam, não ser um obstáculo para sua imposição dentro da sociedade. Ela se comportou como uma classe ciente de sua função histórica, poderiam dizer. É um aspecto possível de ser utilizado para apresentar uma noção fatalista de determinismo histórico, descrita numa máxima como “a classe burguesa, por definição, escalará os degraus da escada social e alcançará pleno poder” — pois foi justamente a aparência que possuiu essa ascensão.

Florestan segue apresentando dois grandes tipos de burguês: aquele que busca o lucro para obter poder e independência, superando o que for necessário para alcançá-lo; aquele dinâmico e racional o suficiente para empreender, para ser um agente econômico efetivo. Segundo Maurice Dobb (1987, p. 14-15), visão semelhante possuía

Werner Sombart, que buscou a essência do capitalismo não em qualquer dos aspectos de sua anatomia econômica ou sua fisiologia, mas na totalidade dos aspectos representados no Geist ou espírito que tem inspirado a vida de toda uma época. Tal espírito é uma síntese do espírito de empreendimento ou aventura com “o espírito burguês” de prudência e racionalidade.

E esse espírito burguês é a condição sine qua non para a concretização do capitalismo. O burguês e a revolução burguesa se comportam como uma necessidade sócio-histórica para que o capitalismo consiga nascer e se organizar; por esse motivo, essas categorias e conceitos ultrapassam o mero anacronismo, vão além da simples repetição da história europeia, visão já demonstrada falsa anteriormente. A revolução burguesa, na verdade, serve como um baluarte social, como uma estrutura passível de reprodução nos diversos tipos de sociedades. Não poderia ser diferente, visto que é erigida por uma classe notável pela dinamicidade.

De início, não havia espaço para a influência do capitalismo comercial sobre a arquitetura econômica interna, devido ao poder e à influência do senhor de engenho — basicamente, a mobilidade social característica do capitalismo era neutralizada pelo caráter estamental do poder latifundiário. Essa situação só se revertia quando, por algum motivo, os interesses dos burgueses e dos senhores se equivaliam. Nas palavras do próprio Florestan Fernandes (2008, p. 40):

A elaboração daqueles móveis capitalistas passava a depender, portanto, do modo pelo qual a situação de interesses do senhor de engenho se refletia em suas probabilidades de ação econômica dentro da Colônia.

Ou seja, o burguês ainda não havia alcançado a independência almejada e permanecia numa espécie de relação mutualista com o senhor de engenho. Surgiram disso três deformidades, segundo o autor: a primeira foi a incapacidade do colono de agir na economia com práticas alternativas das usuais — tornava-se escravo da fonte de renda a qual já estava vinculado —, graças ao pouco dinheiro restante na colônia, transportado quase integralmente à metrópole. Cria-se uma estabilidade econômica forçada, inviabilizadora de novas possibilidades econômicas no território.

A segunda se manifestava no aspecto multifacetado dos objetivos senhoriais. Este, ao contrário do prudente burguês, arriscava até mesmo a própria vida para garantir seu sucesso. A diferença principal reside na ausência de lucro entre os objetivos do senhor de escravos, conforme citado anteriormente. Florestan chega a chamá-lo de “soldado da fortuna” (p. 41). Investia seu nome, sua honra e sua vida para obter o que almejava.

A terceira e última deformação surgida no seio dessa contradição senhoria-burguesia é a organização do sistema colonial, voltado para a apropriação integral da colônia pela metrópole, fator determinante para a realização do rompimento pela classe burguesa que se formava no país.

Bibliografia utilizada

DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. 9. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1987. 396 p.

FERNANDES, Florestan. Questões preliminares de importância interpretativa. In: FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: Ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008. Cap. 1. p. 31-48.

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